A única certeza que todo ser humano tem é que um dia a morte chega. E quando chegar, o que acontece com a herança de dados deixada por nós? Essa resposta ainda é uma incógnita. Dizem que em 50 anos haverá mais perfis de pessoas mortas do que vivas no Facebook. Especialistas afirmam que esse é um debate que precisa estar na mesa da sociedade, e para ontem.
Se um testamento ajuda a compartilhar o patrimônio físico, no ambiente digital a situação é mais complexa devido à forma com que o conteúdo é distribuído e armazenado. Cada vez mais pessoas usam redes sociais, armazenam arquivos nas nuvens e trocam emails. No Brasil, 70% da população já têm acesso à internet. Todo esse conteúdo digital gerado hoje será matéria-prima para pesquisas históricas futuras.
Apesar de o Brasil já ter a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), que entrou em vigor no mês passado, ela não trata especificamente sobre o que acontece com as nossas informações digitais quando morremos. Fica a cabo das empresas decidirem o que fazer com a conta e os dados do perfil de alguém que faleceu.
Algumas delas permitem que você deixe a sua conta de “herança” para alguém, mas essa pessoa terá apenas um poder parcial sobre ela. Dados pessoais, postagens, mensagens privadas, tudo é propriedade da empresa que mantém aquela rede social, conta de email, nuvem etc. e não sabemos ao certo como esses dados serão tratados.
“Normalizamos falar sobre a segurança dos nossos dados e privacidade, mas deveríamos começar a incluir na conversa como lidar com esses dados após a nossa morte. Isso é complicado porque envolve morte e ninguém quer falar sobre isso”, disse Faheem Hussain, professor da Universidade do Arizona em entrevista ao “Financial Times”. Ele tem dedicado anos de pesquisa sobre como pessoas, plataformas e governos têm gerenciado as vidas digitais dos falecidos.
O que acontece com nossos perfis quando morremos?
As plataformas têm regras diferentes sobre o que acontece com as contas de pessoas que morreram. No Twitter, a única opção que existe é a desativação da conta; no Instagram e Facebook, é possível tanto solicitar a remoção da conta quanto transformá-la em um memorial.
No caso específico do Facebook, ainda é possível escolher, em vida, uma pessoa para gerenciar a conta quando a pessoa morrer. Mas esse “herdeiro” só vai ter acesso a algumas funções.
“Ele não acessa suas mensagens privadas, ele não pode enviar mensagem, não pode publicar. Só pode acessar o que já está lá, pode trocar a capa, a foto e ver os posts que estão lá”, diz João Vitor Rodrigues, pesquisador e professor de Comunicação e Marketing Digital da ESPM Rio.
Nas contas memoriais do Facebook:
- A expressão “Em memória de” é exibida no topo;
- Amigos podem compartilhar lembranças na linha do tempo do falecido;
- O conteúdo que a pessoa compartilhou permanece visível para o público com o qual foi compartilhado.
No caso do Google, o usuário também pode informar quem pode ter acesso às informações depois de sua morte. Isso pode ser feito no “Gerenciador de contas inativas”. Na sua página, a empresa afirma que trabalha com membros imediatos da família e representantes para fechar a conta da pessoa falecida e que, “em certas circunstâncias”, é possível fornecer o conteúdo da conta.
“Em todos esses casos, nossa principal responsabilidade é manter as informações das pessoas seguras, protegidas e particulares. Não podemos fornecer senhas ou outros detalhes de login. Qualquer decisão de atender a uma solicitação sobre um usuário falecido será feita somente após uma cuidadosa análise”, diz a página.
Segundo Rodrigues, é comum que a família entre com uma ação judicial pedindo acesso aos dados da pessoa falecida.
Direito a privacidade após a morte
Logo após apresentar um painel sobre esse tema no encontro anual da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência), no fim de fevereiro, Faheem Hussain contou à revista “Science” o caso do estudante universitário e ativista social Nahian Al Muktadir, que lutava contra um câncer.
Durante todo o tratamento, Al Muktadir compartilhou ativamente sua experiência diária de luta contra o câncer no Facebook, em diferentes formas de compartilhamento (na sua página, em grupos, etc.).
Ele conta que depois que o rapaz morreu, familiares e amigos queriam publicar todos os seus status no Facebook em um livro, mas não conseguiram porque muito desse conteúdo se tornou inacessível. “Em essência, a família teve que brigar pelo legado digital de Nahian”, disse Hussain.
Os especialistas afirmam que o direito a privacidade deve ser preservado mesmo após a nossa morte, mas há casos e casos, conteúdos e conteúdos.
“Tem um episódio do Black Mirror [série da Netflix] em que uma mãe quer desesperadamente saber o porquê do suicídio de sua filha. No passado, talvez ela buscasse seus diários, correspondências com amigos, anotações esparsas. É justo privá-la dessas informações? É uma pergunta que não tem uma resposta simples”, afirma Mariana Valente, coordenadora do capítulo brasileiro do Creative Commons e diretora do InternetLab, centro independente de pesquisa sobre direito e tecnologia.
Valente acrescenta que se a pessoa, em vida, quis que as postagens ficassem restritas a um conjunto de pessoas, essa também é uma escolha que envolve decisões de privacidade. “Não soa confortável que essa pretensão possa ser considerada simplesmente extinta porque uma pessoa acaba de falecer”, afirma.
Para Rodrigues, as nossas interações, mensagens e até relacionamentos amorosos nas redes sociais ajudarão gerações futuras a entender a sociedade do século 21.
Em 2010, o Twitter fez uma grande doação de dados à biblioteca do Congresso dos EUA. Na ocasião, Matt Raymond, ex-diretor de comunicações da biblioteca, afirmou que “os tuítes individualmente podem parecer insignificantes, mas, vistos em conjunto, podem ser um recurso para as gerações futuras entenderem a vida no século 21”.
Mas quem vai definir o que é de interesse público ou privado? Quem terá a responsabilidade de separar e armazenar dados de valor histórico? São mais perguntas sem respostas.
Para Rodrigues, essa é uma questão urgente e importante para o nosso tempo. “O uso dessas tecnologias é muito recente ainda nas nossas vidas, então há muitas dúvidas sobre como tratar determinadas consequências do uso dessas tecnologias”, afirma.
Quem deveria fazer a curadoria desses dados?
As empresas de tecnologia são as detentoras legais de toda a nossa vida digital quando aceitamos seus termos e condições e criamos nossos perfis em suas plataformas. “A partir do momento em que a gente concorda em utilizar aquela mídia social, a gente está cedendo tudo o que a gente faz ali dentro a essa empresa”, diz João Vitor Rodrigues, da ESPM Rio.
Em artigo intitulado “Os mortos estão dominando o Facebook? Uma abordagem de Big Data para o futuro da morte online”, publicado no ano passado, pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, afirmam que o atual modelo de livre mercado oferece poucos incentivos para as plataformas gerenciarem esses dados pensando nas gerações futuras.
“Elas têm pouco incentivo para compartilhar essas informações — para não falar da complexidade dos direitos póstumos à privacidade. (…) Para uma empresa, o que faz com que dados ‘valham a pena ser preservados’ é a sua capacidade de contribuir direta ou indiretamente para o seu lucro”, diz o texto.
Em outras palavras, como gerenciar dados de pessoas mortas traria ganhos para essas empresas?
O texto defende que parte desses dados deveriam ser compartilhados com governos, ONGs, universidades, bibliotecas, museus e “qualquer outro tipo de instituição que forneça perspectivas únicas sobre o valor de nossa herança digital”.
Além disso, os pesquisadores questionam se não seria perigoso concentrar tantos dados pessoais e restos digitais nas mãos de “um pequeno número de atores globais”. “Como [George] Orwell observou tão habilmente em ‘1984’, aqueles que controlam nosso acesso ao passado também controlam como percebemos o presente”, afirmam.
Para Rodrigues, já está na hora de levar essa discussão para os nossos legisladores. “Está na hora de a gente entrar na discussão, exigir, estar com nossos representantes legais na política para debater leis [sobre isso]”, diz.
À Science, Hussain disse ser “um grande defensor de deixar o mercado decidir sobre os padrões e não a lei”, mas afirmou que é preciso haver diálogo da sociedade com as empresas para encontrar soluções para o problema.
Valente acrescenta que já há iniciativas que compilam o conteúdo postado publicamente na web. “Há projetos como o archive.org que fazem esse trabalho de compilação, e tem um projeto em Portugal, mas nada no Brasil (para o conteúdo especificamente brasileiro)”, diz.
Ela afirma que esse debate é essencial porque o conteúdo digital é mais delicado do que aparenta. “Nossas comunicações são progressivamente digitais, que tem permanência mais frágil que o material, por mais contraditório que isso pareça. Basta um serviço ser descontinuado, e, se ele não tiver sido copiado por outrem, some do mapa”, diz.
Fonte: UOL