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Cresce nº de brasileiros que registram últimos desejos em caso de doença

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Publicado em: 3/02/2021
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“Existe muito tabu, mas temos que falar da morte, porque ela vai acontecer com todo mundo”, diz a advogada e terapeuta Milena Silva, 32. “É melhor que a conversa seja no momento em que a pessoa está bem, porque na hora que já está morta, é muito pior.”

Em 2018, aos 29, Silva foi diagnosticada com câncer de mama em estágio avançado e, pela primeira vez, refletiu sobre a própria finitude. “Eu me recusava a aceitar que estava doente, porque era sempre eu quem cuidava das pessoas”, diz. Durante o tratamento, um dos quimioterápicos causou danos graves em seu sistema nervoso, provocando dores excruciantes. Descobriu que muitos pacientes de câncer não morrem de câncer, mas de dor.

Silva está entre os poucos brasileiros que redigiram suas Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV). Trata-se de uma ferramenta na qual o indivíduo expressa seus desejos em relação aos cuidados da saúde, diante de uma condição grave e potencialmente sem cura.

Em agosto de 2020, a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia lançou o aplicativo “Minhas Vontades”, para estimular as pessoas a registrarem suas DAV. Nele, o usuário é convidado a refletir sobre o sentido da vida e a tomar decisões como:

– caso médicos atestem que não tenho perspectiva de cura ou melhora, desejo que realizem cirurgias que não vão me dar conforto ou aliviar minha dor?

– quero que continuem administrando antibióticos, quimioterápicos ou outros medicamentos?

– espero que realizem ressuscitação cardiopulmonar, caso meu coração pare de bater e eu pare de respirar?

– quem autorizo a tomar decisões por mim?

“Nossa intenção, ao desenvolver o aplicativo, é propor um percurso de fácil entendimento para que as pessoas reflitam e registrem suas vontades sobre como gostariam de ser cuidadas ao final da vida”, afirma Daniel Azevedo, presidente da SBGG-RJ e idealizador do aplicativo.

Criadas em 2012 com uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina), as DAV não têm valor legal, ou seja, cabe ao médico decidir ou não se vai acatar as vontades do paciente, levando em consideração princípios técnicos e éticos. Por isso, embora muitas pessoas optem por registrar suas DAV em cartório, isso não é exatamente necessário — ainda que dê um tom mais oficial ao documento. Desde a resolução, o número de registros no Brasil foi crescendo, ainda que de forma tímida, segundo dados do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo: de 35 em 2008 foi para 232, em 2012, 731 (maior número registrado até hoje) em 2015, e 549 em 2020.

Já existe um sistema para verificar se a pessoa tem ou não DAV, uma forma de os profissionais de saúde terem absoluta certeza de que foi feito, explica a advogada Cláudia Stein, especializada em Direito de Família e Sucessões. E, mesmo registradas, é possível revogá-las a qualquer momento; basta comunicar a nova decisão a familiares e, principalmente, aos médicos responsáveis pelos cuidados.

Silva preferiu se precaver: no fim de 2020, escreveu suas DAV e as comunicou à família. Em seguida, publicou-as no Facebook. O plano é deixar um documento em seu prontuário médico e, talvez, registrar também no cartório. “Em janeiro de 2020, tive uma suspeita de recidiva e senti necessidade de escrever e falar. Tinha muitas coisas que as pessoas precisavam saber e eu tinha plena consciência de que queria respeitar o momento que o corpo pede”, diz. “Nascer é natural, morrer também é.”

Cuidados no congelador

A paulistana Elca Rubinstein, 75, começou a sentir necessidade de conversar sobre a morte após perder a mãe, em 1999. “Quando ela estava viva, eu era filha. Quando ela morreu, virei a próxima”, lembra. Ao visitar o cemitério um mês depois, seguindo a tradição judaica, notou que o túmulo ao lado estava vago. E descobriu que podia comprá-lo. “Aquilo foi um convite. Perguntei o preço, comprei e hoje tenho um túmulo ao lado do da minha mãe”, conta.

A partir disso, foram anos elaborando e encarando um “novo jeito de viver o terceiro ato da vida”, que passaram por deixar os cabelos brancos em um simbolismo de aceitação da própria finitude e diversos cursos sobre envelhecimento e morte. Em um deles, a tarefa era escrever seu testamento vital — embora seja muito usado como sinônimo de DAV, existe uma diferença técnica: enquanto as DAV podem ser usadas quando o paciente perde a capacidade de decisão, o testamento vital trata exclusivamente da vontade para cuidados em fim de vida.

Durante um ano, trabalhou na elaboração do documento, que hoje fica guardado em um saquinho de ziploc em seu congelador. “é uma brincadeira, porque na prática meus filhos e meus médicos têm uma cópia”, conta. “Mas é que nos Estados Unidos, ter um testamento vital é obrigatório [Rubinstein foi economista do Banco Mundial em Washington, onde uma lei estadual regula os limites e a validade de um testamento vital], e é um hábito que pessoas que moram sozinhas deixem os seus no congelador. Assim, em caso de emergência, os socorristas já sabem onde encontrá-lo.”

Todas as dimensões do sofrimento

Apesar do tom de brincadeira, Rubinstein usa o exemplo para mostrar a diferença cultural entre o Brasil e outros países ao lidar com o tema. “Em outros países, a discussão está mais avançada. Aqui ainda tem um ‘Deus me livre’ quando falamos no assunto”, opina.

Na visão da médica paliativista Sabrina Ribeiro, autora do livro “Cuidados Paliativos na Emergência” (Editora Manole, 2020), é quase como se nossa cultura nos condicionasse a pensar que a morte não é algo natural.

Quando era criança e sua avó morreu, ela sequer foi ao enterro. “Entendo que minha família quis me proteger, mas com isso criaram um vazio”, conta. Anos mais tarde, quando sua outra avó estava prestes a morrer, a família toda estava próxima, realizando os cuidados paliativos.

“Existe muito preconceito em relação ao cuidado paliativo, ele não é só para terminalidade, embora seja confundido com isso. Tirar medidas de suporte, abandono ou deixar sem assistência também não é cuidado paliativo”, explica.

O problema, observa Ribeiro, é que caminhamos cada vez para um modelo de medicina em que o cuidado médico é voltado quase que exclusivamente para o prolongamento de vida. É por isso que paliativismo e DAV caminham de mãos dadas.

“Os pacientes são os melhores professores”, diz a especialista, que conta uma situação que viveu recentemente. “Visitei uma senhora de 90 anos que estava na UTI, e ela me disse que tinha medo. E eu perguntei: ‘a senhora tem medo de quê?’ E ela me disse que não tinha medo de morrer, e sim de não andar, de não sair mais da cama, pois tinha um filho especial que não conseguiria cuidar dela caso ela ficasse acamada. Então, a morte era um desfecho aceitável para ela, mas ficar acamada, não.”

Há diferenças entre cuidado paliativo e eutanásia: enquanto o objetivo do primeiro é prezar pelo conforto e permitir que o corpo “siga seu caminho natural”, a segunda tem a função de abreviar o sofrimento de uma doença grave, fazendo o uso de medicamentos específicos que provocam a morte.

“Antigamente, a gente dava tudo para viver mais alguns anos, mas vai chegar o momento em que daremos tudo para viver menos”, opina Rubinstein. Mas, por enquanto, ela encontra tranquilidade em saber que, quando a hora chegar, suas vontades serão respeitadas.

“Saber que tudo está resolvido me dá paz de espírito. Eu ganhei um futuro, pois sei que, daqui até o dia em que morrer, tenho mais com o que me preocupar”, diz. Seus filhos sabem, por exemplo, que ela não quer ser submetida a nenhum tipo de procedimento invasivo. Caso esteja com dor, aceita que sejam administradas doses de morfina. E, se chegar a um ponto em que suas capacidades motoras e mentais estejam muito comprometidas, prefere parar de tomar medicamentos.

Fonte: UOL

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